quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Dona Lindona

Um boteco estrelado pra esta Sanja crepuscular. É o que eles queriam. Bons de copo, cheios de ideias e atrás duns trocos, Zerbetto Brothers —Celso e Carlão—, Gil Sibin, Sérgio Tché Bozzolo e Sonia Sueli de Souza puseram na cachola que a night destas bandas caipiras nunca mais seria a mesma. Estávamos no final dos anos 70 e o Tekinfin ainda era um bar incipiente.

O local escolhido foi um subsolo puído lá na baixada da rua São João. Por razões óbvias, a taberna foi batizada de Porão.

E o cardápio? Nada de convencional. Drinques, lanches e petiscos com pedigree do melhor da Pauliceia desvairada.

A criação deste menu consumiu dias de peregrinação pelos points que ferviam na noite paulistana. Cardápios foram surrupiados de cafés do Bexiga e de pubs dos Jardins. É falso dizer que a pesquisa foi chata. 

Após a maratona de cartas tungadas e acepipes devorados, o estado-maior do Porão se reuniu num etílico benchmarking para bater o martelo acerca do menu.

Martelo batido, entre as escolhas estava o sanduíche beirute. Prevenidos, os empresários da noite mandaram vir da metrópole toneladas da alma do beirute: o pão sírio dos “brimos” da 25 de Março e adjacências.

Dias antes da abertura da casa, percebeu-se que os pães estavam deteriorados. Todo o “oriente médio” estava tomado por um asqueroso bolor. Daqueles bem verdes e aveludados.

A rede de contatos foi acionada pelo vozeirão do Celso Zerbetto. A emergência pedia o socorro ligeiro da sogra paulistana. Dona Lindona ouviu os clamores via DDD:

—Dona Lindona, sogrinha do coração, pelamordeDeus! desce na 25 e manda pra cá trocentas dúzias de pão sírio. Vamos abrir o boteco e o menu tem que estar completo.

Solícita com o genro, Dona Lindona atendeu as preces do vozeirão e no dia seguinte eram descarregadas nas imediações da Estação trocentas dúzias de... pão folha. What? Árabe, finíssimo, do tamanho de uma toalha de rosto. O pão era sírio, mas inapropriado para o beirute.

Celsão não se zangou com o equívoco e teve um insight gastronômico genial: estendeu a “toalha” na mesa, cobriu-a com maionese, tomate, alface, rosbife, queijo, e dobrou sucessivamente a folha síria recheada. O insólito embrulho ainda padeceria de outra invencionice zerbettiana: foi pincelado por fora com densas camadas de geléia de morango. As testemunhas da grande sacada explodiram em gozo ao provar o sanduba. Nascia ali, naquele típico acaso das grandes invenções, o Dona Lindona, um ícone da gastronomia sanjoanense. Um tesão agridoce!

Anos depois, após o Porão baixar as portas, a ferveção na Sanja-night era no Salamalec. A viuvada do Dona Lindona pediu ao proprietário da nova casa que introduzisse a iguaria no cardápio. Conseguiram. Celso Zerbetto passou o know-how da lenda embrulhada à cozinha do Salamalec. Os glutões agradeceram. Bem verdade que nessa época o Dona Lindona foi vítima de uma herege variação. Tiveram a ousadia de substituir a geléia por requeijão. Os fundamentalistas protestaram, em vão, contra a opção queijeira. 

Porão e Salamalec, hoje, apenas vivem na memória desta Sanja; Celso Zerbetto só quer saber de pedras nobres e culinária chinesa. Este escriba, saudoso e faminto, enche a boca d’água torcendo para que algum bem-aventurado restaurateur resgate o Dona Lindona e o devolva ao circuito botequeiro desta província crepuscular.

Em tempo: o criador escreve ao cronista para dizer que o requeijão era opção do cliente desde sempre. Como eu conheci e gostei do Dona Lindona com geléia de morango, acato a informação do Celso, mas mantenho a “herege variação” na crônica, puxando pro meu paladar pessoal e fazendo uso de uma licença poética. 

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