sexta-feira, 29 de agosto de 2014

As maçãs de Steve

maçãs

Steve é um produtor de maçãs. Mais: Steve produz várias qualidades de maçãs. Mais ainda: Steve produz maçãs e tem quitandas próprias que vendem suas maçãs no mundo inteiro. Steve refuta o termo quitanda; ele prefere Loja da Maçã.

Obcecado pela excelência, Steve investe pesado em pesquisas. Não passa ano sem que ele surpreenda o mercado. Ora cria novas espécies de maçãs, ora aprimora os atributos das já criadas.

Steve gosta de filosofar: “As pessoas não sabem quais maçãs querem, até que mostremos tipos diferentes a elas”. Steve entende de maçãs, mas Steve entende muito mais de gente.

A empresa de Steve fica longe daqui, num outro país. Nosso reino até produz algumas maçãs de Steve, mas as sementes vêm da terra dele.

No portfólio macieiro de Steve, as campeãs de vendas são a mAçã C e a mAçã S. Ele pouco explica a nomenclatura das suas frutas. Deduzo que o C é de comum e o S é de super. Minha dedução vale nada perto das convicções de Steve.

As mAçãs C e S têm sabor e tamanho muito parecidos. A modelo S, pela aparência mais robusta e polpa mais sumarenta, custa mais que a C. A diferença de preço nem é tanta, mas Steve encasquetou que os reinos menos afortunados iriam cair de amores pela mAçã C. Steve é um gênio, mas até os gênios se enganam. Os miseráveis rejeitaram a mAçã C de Steve.

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Orual, nativo do Reino das Bananas, é um pobretão inconformado. Sua birra tem a ver com o desapreço de Steve pelo seu torrão natal. As mAçãs novidadeiras só chegam à ilha de Bananal muitos meses após o lançamento na metrópole de Steve.

Os rompantes de impaciência de Orual beiram a insanidade. Mal tendo dinheiro pra comprar jiló na feira, ele voou para a Grande Maçã no intento inabalável de possuir a mAçã S.

O time de Steve é bem treinado para conter a turba de maltrapilhos ousados. O sotaque bananeiro entrega a origem e a Orual só é ofertada a mAçã C. Se os quitandeiros são bem amestrados, Orual é um jeca teimoso.

Na Grande Maçã, o caipira faz um périplo desesperado e passa por todas as lojas de Steve. Nada da S e tudo da C.

—Cê é o cacete! Eu quero a porra da esse!

O desabafo vigoroso sai no seu exótico dialeto aborígine. O brado ecoa até os ouvidos de um conterrâneo de Orual, infiltrado no exército de Steve, que se sensibiliza com o lamento.

O irmão-bugre acusa:

—A loja do Parque Central funciona vinte e quatro horas. Apareça lá zero hora que, na madrugada, chega uma carga extra de mAçãs S. No frio, antes do amanhecer, podemos vender a S aos descamisados dos trópicos.

Na sua distante hospedagem, Orual toma o trem das onze (Evoé!, Adoniran), viaja sessenta minutos no vagão vazio e, da Grande Estação, caminha mais sessenta minutos sob uma hostil temperatura polar para, glória!, finalmente receber a mAçã S dos branquelos assalariados de Steve.

Com a mAçã cobiçada na mochila, Orual vagueia pela grande cidade na companhia de artistas, bêbados e putas. Ele tem que matar o tempo até às seis da manhã, horário do primeiro trem de retorno.

Por alguma razão, ali, insignificante entre os arranha-céus, mal agasalhado, faminto e molambento, Orual amaldiçoou aquele casal desobediente do Jardim do Éden.

Em tempo: se alguém ainda tem dúvidas dos tons autobiográficos, o signatário do texto confessa sua busca desavergonhada por um iPhone 5S, no outono de 2013. E, convenhamos, truquinho manjado esse de grafar o nome de trás pra frente.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Amendoim no pote

paçoquita

O assunto, importantíssimo para a nutrição do cidadão, fundamental para os destinos do país, tem gerado comoção e repercussão nas redes sociais e nos portais de notícias.

A tal Paçoquita cremosa é a bola da vez no mundo digital. Marketing agressivo na internet somado a um intencional desabastecimento do produto, viralizaram a peanut butter tupiniquim —dizem até que colunistas de pequenos jornais e blogueiros embolsam polpudos jabás pra falar dela. Sei não...

E em ano eleitoral, os candidatos têm que alinhar seus discursos aos clamores da sociedade, seja em entrevistas ou no horário político obrigatório.

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William Bonner, impiedoso, provoca a presidenta Dilma:

—Candidata, no exercício do seu primeiro mandato a senhora criou vários Ministérios. Nenhum, repito, nenhum foi dedicado à amendoinocultura. Como consequência, enfrentamos essa carência de Paçoquita que tanto tem afligido os brasileiros. Como encher as prateleiras dos supermercados com o produto?

—Veja, Bonner, muito oportuna a sua pergunta. O meu quadragésimo Ministério será o do Amendoim e Congêneres. E mais ainda: vou criar a AmendoBras, uma agência do governo que vai gerir a produção e distribuição da Paçoquita em todo território nacional. Também não descarto enviar ao Congresso um projeto de lei instituindo o Bolsa Paçoquita. Pelo dispositivo legal, famílias que ganham até um salário mínimo por mês teriam direito a dois potes gratuitos de Paçoquita.

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Paulo Maluf:

—Bandido bom, é bandido preso. Polícia boa, é polícia na rua, é a Rota na rua. Paçoquita boa, é Paçoquita na mesa do trabalhador que, depois de um dia cansativo na labuta, precisa de energia para cumprir a contento suas obrigações conjugais. São Paulo não pode parar, a Paçoquita não pode acabar.

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Marina Silva:

—Os ideais do Eduardo não morrem com ele. Vamos honrar esse legado. Não vamos desistir do Brasil, não vamos desistir da Paçoquita.

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—Meu nome é Aécio Neves, vamos conversar? Nestes doze anos de desgoverno do PT nada foi feito para resolver esse grave problema de desprovimento de Paçoquita nos lares brasileiros. A minha primeira medida como presidente da República vai ser privatizar empresas estatais ineficientes e obrigar os compradores a adaptar seus parques fabris para que se transformem em grandes produtoras de Paçoquita.

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José Serra:

—Como ministro da Saúde, eu criei o medicamento genérico. Como senador por São Paulo, vamos criar a Paçoquita genérica. A mesma qualidade da original por um preço bem mais em conta. A locomotiva do país vai ser movida por pasta de amendoim.

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Geraldo Alckmin:

—O Paçoquita Para Todos vai ser um marco para a população bandeirante. Se a falta de chuva castiga o Estado com uma terrível crise hídrica, São Paulo vai ter o maior programa de inclusão paçocal do planeta. Sem água, mas com paçoca.

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Levy Fidelix:

—Dane-se a Paçoquita, a minha bandeira de campanha ainda é o AeroTrem...

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

O Leão Vermelho

gastronomia

A descoberta

Lendo a coluna da Alexandra Forbes, no caderno Comida da Folha, em dezembro de 2012, me deparo com isso:

“Restaurantes-miniatura oferecem algo mais valioso do que um menu bem-feito: a experiência de ser alimentado diretamente e intimamente por um cozinheiro interessante. Não são exclusividade parisiense. Vejo-os pipocando tanto em Nova York —Blanca, no Brooklyn— como em São João da Boa Vista, SP —onde Gabriel Vidolin, ex-estagiário do El Bulli, cozinha para quatro pessoas por noite em seu O Leão Vermelho. O fato de servirem poucos só aumenta o charme: nada como uma reserva difícil de conseguir para estimular a curiosidade de um gourmet…”

Decepção

Comida e Sanja, não necessariamente nessa ordem, atiçam vário instintos no autor destas mal-traçadas. Numa “googlada” achei o site e enviei mensagem ao chef pedindo um bate-papo pra conhecer esse inusitado restaurante. Uma assessora de imprensa, cujo nome afrancesado saiu da minha memória, respondeu-me via e-mail arrolando algumas excentricidades para que a entrevista acontecesse. A mais estapafúrdia —e aviltante— era submeter meu texto, antes de qualquer postagem ou publicação, à aprovação deles. É óbvio que, por isso, o colóquio não rolou naquele findar de 2012.

Mimo

Dia destes, um casal amigo, exilado nos EUA, investiu algumas verdinhas naqueles sofisticados condomínios mantiqueiros. Estava vigente a promoção: “Compre um lote e ganhe um jantar”. Este esfarrapado escriba e sua consorte foram mimoseados com os convites para repastar n’O Leão Vermelho. Presente a gente não recusa, agradece. Thank you, friends!

A chegada

20:20, último sábado, estaciono meu carro num trecho residencial da rua Getúlio Vargas. A alameda deserta fica mais lúgubre com a densa arborização que mitiga os raios da iluminação pública. Dois outros veículos já estão no pedaço. Ninguém se arrisca antes da hora marcada. 20:30, eu puxo a fila e cruzo o gradil vermelho. A testada é pequena e um jardim de poucos metros separa a calçada da porta. Um sininho à esquerda da entrada funciona como campainha. Meio encabulado, badalo o negocinho umas três vezes. Gabriel, muito gentil, nos dá as boas-vindas. Enquanto lamenta a ausência da sommelier, “Carolina precisou viajar às pressas para Montevidéu e não estará conosco nesta noite”, ele nos conduz à biblioteca. Entre livros, a maioria de gastronomia, somos aboletados numa mesa para quatro pessoas. Os dois outros casais que entraram logo atrás são acomodados em ambientes distintos. A casa é antiga, simples, a decoração prima pela sobriedade sem nenhum traço de rebuscamento. Várias peças da mobília foram concebidas pelo chef.

O confisco

“Não permitimos o uso de celulares n’O Leão”, decreta Gabriel antes de aprisionar meu gadget numa caixinha de madeira. A experiência ali implica na renúncia compulsória e momentânea à vida digital.

A brigada

Vidolin só tem o auxílio de uma pessoa na arte de cozinhar e servir: Felipe, um chef aprendiz made in Belém do Pará. O serviço é polido e corretíssimo.

A sequência

Não há possibilidade de escolhas. A definição do menu, cujos pratos são apresentados de forma impecável, é prerrogativa exclusiva da casa. A sucessão degustativa foi assim, salvo lapsos de memória: um frisante de Bento Gonçalves anima o paladar para um pão saindo do forno, de massa muito leve, acompanhado de manteiga caseira. Ricota fica bem com os parceiros, pepino, menta e biscuit de casca de laranja, e também tem a companhia do borbulhante gaúcho. Um mix de pastas in brodo —uma espécie de sopa— enriquecido com linguiça defumada e abobrinha. Tilápia grelhada salpicada com amêndoas, sementes de abóbora e gerânio. Estes pratos são harmonizados com um riesling chileno. O tinto, também do Chile, escolta o protagonista: lombo bovino —muito similar ao boeuf bourguignon— com purê de grão de bico e batata assada. Sobremesas: coalhada frozen com abacaxi assado e sorvete de amendoim chuviscado com raspas de chocolate. Os chamados digestivos vêm em dose tripla: chá frutado, licor Frangelico —feito de nozes moídas, misturadas com cacau e baunilha— e licor de framboesa. A água Fonte Platina, gasosa ou não, fica ali, sempre à mão, para um hidratante e protocolar intervalo entre os vinhos.

O chef

Gabriel Vidolin, 25 anos, formado no SENAC de Águas de São Pedro, já estagiou e trabalhou em restaurantes estrelados no Brasil e no mundo —El Bulli é o mais famoso, mas é do Mugaritz, no País Basco, que ele mais gosta. Sua cozinha é rotulada como autoral ao extremo. Ele é um artista no seu métier e como tal tem as suas idiossincrasias. Ele enxerga tons rubros no Leão e, talentoso e inventivo como poucos, não seria surpresa se o felino surgisse tingido de verde-limão. Ele é excepcional. Ele pode.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Bento Experidião

bento

Imigrante libanês, o pai entrou no Brasil pela fronteira com o Uruguai. Tinha como referência alguns primos já estabelecidos em Cruz Alta. Nesta cidade do noroeste gaúcho, Hassem Experidião recebeu auxílio de parentes para começar a ganhar a vida naquilo que está no DNA dos árabes: vender.

Andejava por todo o Rio Grande do Sul, mascateando roupas, tecidos e armarinhos. Num destes périplos mercantes, conheceu aquela que seria sua esposa, Maria Fernandina. O casal trouxe ao mundo quatro filhos. Bento foi o caçula, irmão de três mulheres.

Bento pouco conheceu o pai, que morreu precocemente quando o filho mais novo ainda não tinha completado três anos.

A tradição libanesa privou o menino do convívio com a mãe. Separado das irmãs, ele foi criado por um primo do pai.

Aos dez anos, em razão do convívio difícil com a mãe postiça, Bento foi acolhido carinhosamente pela família de José Inácio Zenon, seu melhor amigo. Os Zenon, do patriarca Benjamin, eram proprietários de uma churrascaria. Bento mostrou sua gratidão labutando no estabelecimento de quem lhe deu teto e afeto. Lavar espetos foi sua primeira função. Dedicado e observador, não demorou a aprender os ofícios de assar e servir. Sua polidez e eficiência conquistavam os devoradores de carne. Fazia um bom dinheiro com gorjetas. Já envolvido com a arte do fogão, das bandejas e da boa comida, o garoto, então com doze anos, começou a sonhar com o trabalho na trattoria de Ettore Bonesso, à época, o melhor restaurante de Cruz Alta.

Em localidades pequenas, notícias pululam nas esquinas. E a vocação de Bento chegou aos ouvidos do italianíssimo Bonesso, que logo o convidou para entrar no mundo maravilhoso das pastas. As lasanhas protagonizavam o cardápio da trattoria.

Generoso, Benjamim Zenon não só abriu mão do seu competente auxiliar como incentivou-o a correr atrás do sonho. E mais: permitiu que Bento continuasse a morar com eles.

Com apenas doze anos, o filho de Hassem Experidião foi admitido como garçom numa das melhores cantinas do interior gaúcho. Do salão para a cozinha foi questão de pouco tempo. A gastronomia estava cada vez mais entranhada na vida dele. Sugava o que podia para aprender mais e mais.

A trajetória de Bento na trattoria terminou com o fechamento dela. Ettore Bonesso baixou as portas para acompanhar a filha a Santa Maria, onde ela cursaria a universidade.

O menino de Cruz Alta tinha quinze anos. Não tardou o surgimento de nova oportunidade no ramo que já o arrebatara definitivamente.

No Kalesch, teve o primeiro contato com pratos da alta gastronomia. Entre tantos clássicos, o menu internacional da casa servia coq au vin, boeuf bourguignon...

Essa cozinha requintada era comandada pela analfabeta e alcoólatra Rosa. Ela sabia tudo e mais um pouco e não economizou nos ensinamentos ao discípulo dedicado. A cozinheira recitava um mantra: “Cozinha que se preze tem que ter sempre água quente”.

Água fria na cabeça, Bento recebeu com pouco mais de ano no Kalesch. Wilson, o proprietário, perdeu o jovem profissional por ser inimigo do respeito e das boas maneiras.

Cruz Alta tornara-se miúda demais para as habilidades dele.

Gramado, na turística serra gaúcha, seria um destino perfeito para novos desafios em todas as funções dos operários do bem comer e beber. E assim foi.

Sua carteira de trabalho recebeu o carimbo do cinco estrelas Serra Azul, cuja cozinha era comandada pelo autoritário e muito competente chef Alejandro Diaz. Ali, apesar da dificuldade de comunicação com os colegas —só se falava alemão—, Bento foi agraciado com mais doses de conhecimento. Bem cedinho, antes da brigada alemã chegar, Dom Alejandro Diaz catequizava o promissor cruz-altino com segredos e macetes do sucesso nas caçarolas.

Dominando todos os fundamentos do bem cozinhar e servir, era hora de um aprendizado mais formal para mesclar com a prática. E foi no SENAC do Grande Hotel São Pedro que ele, aos 18 anos, mostrou suas virtudes fora das fronteiras do Rio Grande do Sul. Suas aptidões e empenho desmedido proporcionaram um estágio em toda a área de alimentos e bebidas do complexo São Pedro. Foram dezoito proveitosos meses no interior de São Paulo.

Da minúscula Águas de São Pedro foi alçado ao topo, literalmente, da maior cidade do país. Em 1975 foi ganhar e servir o pão no Terraço Itália, alto também na qualidade do serviço e da comida. No Terraço, conheceu gente importante e aumentou sua rede de contatos.

Na capital gastronômica brasileira, emprestou sua capacidade de trabalho a várias mesas sofisticadas, entre elas o conhecido La Tambouille do não menos conhecido Giancarlo Bolla.

Em todos os restaurantes, para não perder os cacoetes de todas as áreas do ofício, combinava com os chefes para, num dia da semana, inverter as funções.

Por curtos períodos, Maceió e Foz do Iguaçu também hospedaram e aplaudiram o engenho incomum de Bento Experidião.

Em 2003, por conta das origens da esposa Ivone, teve a ousadia de fincar em Espírito Santo do Pinhal o Opção Trattoria Bar, um restaurante com uma proposta ambiciosa para uma cidade de menos de 50 mil habitantes.

Foram nove anos deleitando paladares, formando talentos —Alessandra Lourenço é o maior exemplo— e consolidando um conceito de alta gastronomia em Pinhal e região. Descobrir, formar e lapidar gente com vocação para as panelas, diga-se, foi uma marca que o chef deixou nos lugares onde passou.

Nos idos de 2012, Bento resolveu vender a cria e migrar para a aldeia dos Crepúsculos. E nela, São João da Boa Vista, uma nova cria: o Bento’s, uma casa aconchegante, contemporânea, que sintetiza nos mínimos detalhes a trajetória notável deste obcecado pela excelência no fazer e satisfazer.

Numa época em que jovens chefs enxergam cores berrantes em felinos e pensam mais no marketing de suas esquisitices, sou mais o Bento que, discreto, peleja duro sob a coifa para honrar e perpetuar a clássica e irresistível boa mesa.

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Em tempo: O chef apresentou a sanjoanense Jéssica Taynara (foto) ao blogueiro. Mais uma preciosidade gastronômica da escola Bento Experidião. A garota —em fase de polimento— promete.